quinta-feira, 23 de maio de 2019

ECONOMIA PODE MESMO SER SINAL DE PORCARIA


Estamos no ano de 1999, por aí, e viajo sempre para o Sul de Minas, onde descobri a mina de Salomão. Baú de riquezas não em meu poder, mas de um casal que se instalara à beira da Fernão Dias, rodovia que liga Belo Horizonte a São Paulo, capital. Era um senhor muito simples, quase analfabeto, se é que existe mesmo esse percentual equivalente à sabedoria de trás para diante. O senhor Melquíades tinha uma história que resolvi até escrever na época e publicar na revista digital.

Seu Mel, como a vizinhança o chamava, resolveu vender caldo de cana na beira da estrada. E foi se aprimorando: entrou com água de coco; inventou a garapa na água de coco; sua companheira começou a fritar uns pasteis e não parou de crescer. Fez um banheiro masculino e outro feminino, bem perto  usando as técnicas de fossas assépticas; instalou umas cadeiras, depois lonas para proteger os clientes que ele chamava de “freguês”. Dona Maria o ajudava muito; o filho, de uns oito anos, o Paulinho,  já cortava cana, puxava a dita fornecedora da garapa numa dupla de cabras, e até coco da Bahia arrastava num carrinho de mão de um fornecedor a duas léguas de distância.

Continuou a expansão.  Apareceu  um advogado vindo de São Paulo, que parava sempre ali e o aconselhou  a estender o terreno para os fundos, ofereceu-lhe serviços jurídicos gratuitos caso precisasse, enfim, acompanhou o avanço do amigo por pura simpatia pelo jeito que Seu Melquíades trabalhava e sua simplicidade que atraía atenções. Trouxe pra ele um projeto de extensão de energia elétrica, ajudou-o a montar, no aspecto técnico, com outro trabalho gratuito de um eletricista seu amigo. E o comércio teve uma transformação incrível, o empreendedor analfabeto fez do Caldo de Cana do Seu Mel o Empório Melquíades, que virou também restaurante bem frequentado, depois pousada, ainda um grande posto de combustíveis. Quem diria que Seu Melquíades fosse chegar a tanto e chegou a empregar umas 60 pessoas.



Já velho, mas ainda entusiasmado e trabalhando, trouxe o filho que estudava em Batatais para mostrá-lo a amigos, à família, com muito orgulho. Não era filho único, tinha uma moça também que se tornara professora. Paulinho formou-se em Economia em Batatais (SP). Tranquilo, graças à riqueza dos pais, não corria tanto para buscar ou um emprego ou uma sociedade para ganhar a vida daqui para a frente.  Chegou de diploma na mão, menino bonito, pomposo, fluente num português correto, ao contrário de seu Mel, que “só falava batata”, como diziam na região. Eram expressões do tipo de “nós foi”, “nós vai”, “vou pra riba”, “desci pra baixo”, que davam até vergonha no economista metido que acabava de chegar, e  assustado.

Assustado, sim, com o crescimento assustador da empresa de que foi tirado o seu sustento escolar e até uma boa-vida  no interior paulista. Absurdo, começou a pensar. Via caminhões entregando enlatados, cervejas, refrigerantes, combustíveis,  sacas de milho,  arroz, feijão, porcos, frangos e bois para o açougue, movimentação que o fez chamar o pai num canto e lhe fazer sérias admoestações: “Pai, o senhor está maluco? Vivemos uma terrível crise lá fora; a inadimplência toma conta do Brasil; a pobreza se expande; empresas e mais empresas estão caindo na falência, e o senhor comprando essa quantidade de mercadorias?”

E virou rotina nos dias em que o novo economista estava por ali, ele falava todo dia, abordando expressões que iam de  crises, falências e conselhos desanimadores  que não saíam de nuvens negras. Procurava, enfim, colocar na cabeça de Seu Mel que ele não podia continuar  assim, assinando cheques e mais cheques, comprando carretas e mais carretas de mercadorias para a revenda. Seu Melquíades, então,  já preocupado, começou a não dormir. De madrugada era pilhado em terríveis insônias por Dona Maria.

Ambos, mesmo na calada da noite, começaram a pensar nisto: “Se o nosso filho estudou muito, tirou um ‘deploma’ e tem um anel no dedo; se foi premiado com medalhas  por ser bom aluno da faculdade; se viveu na cidade grande e viu tudo acontecer e sabe o que está aconteceno, a razão tem que tar com ele, nóis é que tá fazendo coisa errada”. As ordens de Seu Melquíades  para os outros empregados passaram a ser constantes, então, a partir dessas reflexões voltadas para a redução nas compras cada vez mais, menos bebidas, menos enlatados, menos cereais e começaram a faltar até gasolina, óleo diesel e álcool nas bombas. Os clientes, sentindo que havia  falta de entusiasmo no Empório da Rodovia, foram mudando de hábitos e afastavam-se naturalmente dali, não eram encontradas mais uma comida boa e nem cigarros, nem caldo de cana, nem coco da Bahia naquele lugar que começou do nada com um senhor muito simples.

É claro que o economista de nome respeitado pelo pai e pela mãe foi perdendo também o seu espaço naquele lugar, pois não havia mais dinheiro sobrando para o seu jeitão esnobe. Restou-lhe cair fora e foi ver se arranjava um emprego lá por onde era reconhecido como profissional do ramo de finanças. Tornou-se fácil  concluir que o Empório do Melquíades foi  pras quintas do inferno, faliu-se, não daria outro resultado. Seu Mel caiu numa  pobreza tão triste que  decidiu ver se conseguia uma aposentadoria  de um salário mínimo com o mesmo advogado que o havia incitado a crescer na vida. Era a sua última esperança sob uma sabedoria que até os pobres de espírito sabiam entender, ao justificar o fracasso dos conselhos do filho: “Santo de casa não faz milagre”.

E registrei esta triste  história verdadeira na revista digital que editei pouco depois da publicação impressa, entre o seu princípio e o meu adeus ao cargo de editor-chefe.

José Sana
Em 23/05/2019

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