Estamos no ano de 1999, por aí, e viajo sempre para o Sul de
Minas, onde descobri a mina de Salomão. Baú de riquezas não em meu poder, mas
de um casal que se instalara à beira da Fernão Dias, rodovia que liga Belo
Horizonte a São Paulo, capital. Era um senhor muito simples, quase analfabeto,
se é que existe mesmo esse percentual equivalente à sabedoria de trás para
diante. O senhor Melquíades tinha uma história que resolvi até escrever na
época e publicar na revista digital.
Seu Mel, como a vizinhança o chamava, resolveu vender caldo de
cana na beira da estrada. E foi se aprimorando: entrou com água de coco;
inventou a garapa na água de coco; sua companheira começou a fritar uns pasteis
e não parou de crescer. Fez um banheiro masculino e outro feminino, bem
perto usando as técnicas de fossas
assépticas; instalou umas cadeiras, depois lonas para proteger os clientes que
ele chamava de “freguês”. Dona Maria o ajudava muito; o filho, de uns oito
anos, o Paulinho, já cortava cana,
puxava a dita fornecedora da garapa numa dupla de cabras, e até coco da Bahia
arrastava num carrinho de mão de um fornecedor a duas léguas de distância.
Continuou a expansão.
Apareceu um advogado vindo de São
Paulo, que parava sempre ali e o aconselhou
a estender o terreno para os fundos, ofereceu-lhe serviços jurídicos
gratuitos caso precisasse, enfim, acompanhou o avanço do amigo por pura
simpatia pelo jeito que Seu Melquíades trabalhava e sua simplicidade que atraía
atenções. Trouxe pra ele um projeto de extensão de energia elétrica, ajudou-o a
montar, no aspecto técnico, com outro trabalho gratuito de um eletricista seu
amigo. E o comércio teve uma transformação incrível, o empreendedor analfabeto
fez do Caldo de Cana do Seu Mel o Empório Melquíades, que virou também
restaurante bem frequentado, depois pousada, ainda um grande posto de
combustíveis. Quem diria que Seu Melquíades fosse chegar a tanto e chegou a
empregar umas 60 pessoas.
Já velho, mas ainda entusiasmado e trabalhando, trouxe o filho que
estudava em Batatais para mostrá-lo a amigos, à família, com muito orgulho. Não
era filho único, tinha uma moça também que se tornara professora. Paulinho
formou-se em Economia em Batatais (SP). Tranquilo, graças à riqueza dos pais,
não corria tanto para buscar ou um emprego ou uma sociedade para ganhar a vida
daqui para a frente. Chegou de diploma
na mão, menino bonito, pomposo, fluente num português correto, ao contrário de
seu Mel, que “só falava batata”, como diziam na região. Eram expressões do tipo
de “nós foi”, “nós vai”, “vou pra riba”, “desci pra baixo”, que davam até
vergonha no economista metido que acabava de chegar, e assustado.
Assustado, sim, com o crescimento assustador da empresa de que foi
tirado o seu sustento escolar e até uma boa-vida no interior paulista. Absurdo, começou a
pensar. Via caminhões entregando enlatados, cervejas, refrigerantes,
combustíveis, sacas de milho, arroz, feijão, porcos, frangos e bois para o
açougue, movimentação que o fez chamar o pai num canto e lhe fazer sérias
admoestações: “Pai, o senhor está maluco? Vivemos uma terrível crise lá fora; a
inadimplência toma conta do Brasil; a pobreza se expande; empresas e mais
empresas estão caindo na falência, e o senhor comprando essa quantidade de
mercadorias?”
E virou rotina nos dias em que o novo economista estava por ali,
ele falava todo dia, abordando expressões que iam de crises, falências e conselhos
desanimadores que não saíam de nuvens
negras. Procurava, enfim, colocar na cabeça de Seu Mel que ele não podia
continuar assim, assinando cheques e
mais cheques, comprando carretas e mais carretas de mercadorias para a revenda.
Seu Melquíades, então, já preocupado,
começou a não dormir. De madrugada era pilhado em terríveis insônias por Dona
Maria.
Ambos, mesmo na calada da noite, começaram a pensar nisto: “Se o
nosso filho estudou muito, tirou um ‘deploma’ e tem um anel no dedo; se foi
premiado com medalhas por ser bom aluno
da faculdade; se viveu na cidade grande e viu tudo acontecer e sabe o que está
aconteceno, a razão tem que tar com ele, nóis é que tá fazendo coisa errada”.
As ordens de Seu Melquíades para os
outros empregados passaram a ser constantes, então, a partir dessas reflexões
voltadas para a redução nas compras cada vez mais, menos bebidas, menos
enlatados, menos cereais e começaram a faltar até gasolina, óleo diesel e
álcool nas bombas. Os clientes, sentindo que havia falta de entusiasmo no Empório da Rodovia,
foram mudando de hábitos e afastavam-se naturalmente dali, não eram encontradas
mais uma comida boa e nem cigarros, nem caldo de cana, nem coco da Bahia
naquele lugar que começou do nada com um senhor muito simples.
É claro que o economista de nome respeitado pelo pai e pela mãe
foi perdendo também o seu espaço naquele lugar, pois não havia mais dinheiro
sobrando para o seu jeitão esnobe. Restou-lhe cair fora e foi ver se arranjava
um emprego lá por onde era reconhecido como profissional do ramo de finanças.
Tornou-se fácil concluir que o Empório
do Melquíades foi pras quintas do
inferno, faliu-se, não daria outro resultado. Seu Mel caiu numa pobreza tão triste que decidiu ver se conseguia uma
aposentadoria de um salário mínimo com o
mesmo advogado que o havia incitado a crescer na vida. Era a sua última
esperança sob uma sabedoria que até os pobres de espírito sabiam entender, ao
justificar o fracasso dos conselhos do filho: “Santo de casa não faz milagre”.
E registrei esta triste
história verdadeira na revista digital que editei pouco depois da
publicação impressa, entre o seu princípio e o meu adeus ao cargo de
editor-chefe.
José Sana
Em 23/05/2019
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