E os cegos? E os idosos cegos? E outros deficientes? E a generalização de
alguns casos? Todos são iguais ou não? Hipócritas! Os políticos, a imprensa,
mais de noventa por cento da humanidade, quase todos são exatamente isto:
dissimulados, falsos, fingidos, impostores, farsantes, enganadores, hipócritas.
Não estou com raiva, apenas estava engasgado e agora me incluo orgulhosamente na
lista dos que tiveram e têm a alegria de dizer que venci, vencemos,
humildemente, e continuo, continuamos, triunfando.
Leio jornais todos os dias. A internet completa o meu vício ultimamente. E vejo, percebo, constato que tratam os
deficientes como marginalizados, dignos de dó. Mulheres são vistas como pobres-coitadas,
e não são, conheço gigantes, fortes, embora dóceis. Cegos pertencem a um patamar
especial, mas eles fascinam acima de tudo. Idosos podem não ser o que pensam. E
os negros? Ah, os negros! Parem de falar em racismo! Negros são da melhor raça
que existe no planeta, constituem até maioria no Brasil. E gastam páginas e tempo
de TV, internet, tentando rebaixá-los. Acordem, malévolos!
E os surdos? Esses a minha bola da vez agora. A receita dos
incautos e covardes é marginalizá-los, fazer de conta que inexistem. O silêncio
é a regra para deixá-los de lado, abandonados, renegados. Esquecem os de
coração bruto que Deus é o Rei da Compensação. Falei certo? Já incluí entre as
minhas definições inarredáveis: Rei da Compensação. Aos cegos Ele deu mais
tato; aos aleijados, mais mobilidade mental; aos surdos, mais percepção,
sentimentos. A todos, mais inteligência. Guardem isto.
Sou obrigado a recorrer ao meu exemplo pessoal. Esse conheço a
fundo. Aos cinco anos de idade, percebi que era um sujeitinho muito cuidado, visado, vigiado. Mais bonito
que os outros? Não. Mais feio que todos? Penso que nem tanto. Cabeça muito
grande? Lá vêm os apelidos. Mas os tapas horríveis nas orelhas começaram a
tilintar aos sete anos, na escola. Minhas notas eram 10 em tudo. Por quê? A
resposta só tive anos depois, vinda do Rei da Compensação.
Aos 16, no curso científico, em Belo Horizonte, tive que parar. A
marginalização era determinante. E nem sei como consegui cursar antes o
Fundamental, chamado de Ginasial na época, num colégio super de frente, o
Ginásio São Francisco, de Conceição do Mato Dentro. Aí levei não apenas tapas
monumentais nos ouvidos, mas bofetadas, coques, lapadas, porque era de vez em
quando um distraído, outras vezes um zonzo, sempre um surdo e para não esquecer
da maior humilhação que doía, “um tiú”, aquele lagarto comprido que, dizem,
nada escuta. Mas não aceitava o que tentavam me impor.
Enfrentei, rompi e ignorei muitos, principalmente colegas de
imprensa, que tentaram denegrir minhas reportagens com questionamentos para
incutir o descrédito de leitores — “ele ouviu? Milagre”, “celular provoca
surdez?” — , passei em concursos diversos, num deles estadual com mais de 5 mil
candidatos, em primeiro lugar; ingressei-me na antiga Companha Vale do Rio
Doce, idem por concurso e fiquei não teimoso mas persistente cursando inglês e
francês. Em tempo: nada de gabar. Esta é só uma narrativa.
Sempre não aceitando, intimamente seguro de que os “instantes
voadores” eram momentos casuais, de distração. Mas, certa vez, de novo em Belo
Horizonte, aos 33 de idade, estudo de inglês, casado, dois filhos (hoje tenho
cinco e mais dez netos), chega o dia fatal: na sala com sete colegas adultos,
todos engenheiros da Vale, a professora me gritou por outro nome que não era o
meu próprio, de cartório e pia batismal, nem distraído, nem tiú, mas
sonoramente pronunciado: “VOCÊ É BURRO!” (Grafo com letras maiúsculas para
declarar o grito da senhora mestra e incluo um ponto de exclamação).
Saí da sala sorrateiramente, subi a avenida Afonso Pena a pé, no
alto da Serra, e fui derramando lágrimas vias acima para derramá-las com um tio
que me acolheu com um carinho de desmanchar qualquer coração duro. Cito o nome dele
para que a glória de Deus o proclame ainda mais: Godofredo Cândido de Almeida
Júnior. Um herói, a quem devo a superação daquele momento difícil. Não riam porque o instante
doeu muito e não é drama.
Uma semana depois, graças à evolução tecnológica, também
sorrateiramente, estava de volta à sala de inglês, mais atrasado que meus
colegas da empresa, mas completamente enquadrado no mundo deles, ouvindo até canto
de canário do reino e o estridular dos beija-flores, cigarras e grilos. Aprendi
o que me ensinaram, falei a língua anglo-saxônica, recebi o diploma e, na hora,
o choro de arrependimento debruçado em meu ombro veio daquela que soltara
aquele grito estridente dias atrás, cujo berro senti que abalara os bairros
Serra, Anchieta e Mangabeiras: “VOCÊ É BURRO!”.
Preciso voltar ao assunto sempre porque existem milhares iguais a
mim, no mundo. Voltar para dizer que procurei a
Associação Ocupacional e Assistencial de Itabira (Aoadi) para
entrosar-me com seus membros e poder explicar meu grito não de burro mas de
“PARE”. Grito de que o mundo é carente em saber que a surdez já é corrigida por aparelhos auditivos,
cada vez mais evoluídos e tornam todos completamente iguais, caso queiram. E
chega de discriminação e segregação injusta! No meu caso, foi-me possível e é
permitido concluir cursos superiores e de pós-graduação, pude e posso
desenvolver naturalmente minha vida profissional. Porque tenho a característica
que é dita na terra do minério de ferro: não entrego a rapadura.
Existem grandes otorrinos e fonoaudiólogas que gostaria de citar
seus nomes, mas não é possível agora. Repito o que já deixei claro: hoje é o
surdo, amanhã é o cego (e tenho uma linda história para contar de uma amiga que
estudou junto de mim um bom tempo), além dos que carregam síndrome de Down
(tenho uma irmã de sangue) e milhares de vencedores escondidos nas curvas e
matas e tocas deste mundo que haveremos de consertar um dia.
José Sana
Em 14/11/2019
P.S.:
Dedico este texto à minha Mãe, Itália Sana de Almeida, que completaria hoje, se
aqui estivesse, 96 anos de idade. Ela que teve o sofrimento de viver longo tempo com baixa audição, como
outros (avó, tios, primos, amigos) não quis experimentar a vida igualitária que a tecnologia nos concede. Que
ninguém mais seja discriminado porque a tecnologia é perfeita.
Você é um guerreiro, Sana. Por isso o admiro. Abraços, sem outros comentários.
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