sexta-feira, 22 de novembro de 2019

“JUQUITA, POR QUE VOCÊ NÃO ME LARGA O PÉ?”


Dedico estas linhas ao meu amigo José Morais de Assis, nome de cartório e pia batismal. De guerra, simplesmente Juquita. O tempo passou e deixo, desde já, a advertência:  não tenho raiva dele, pelo contrário, guardei estima e a tenho. As lembranças se tornam divertidas apenas. Éramos crianças, pré-adolescentes quando os fatos aqui narrados ocorreram.  Os anos revelaram apenas que ele me foi útil. Eu não podia, àquela altura da década de 1950, viver sem freio. Eu era um menino quase totalmente  livre desde quando, aos 12 anos, passei a viver em Guanhães. Os bullyings do Juquita me salvaram.


Vamos ao passado. Estamos em 6 de fevereiro de 1957. Chego à Rua Santa Efigênia, não sei o número, em Guanhães, casa de Zezé e Silvestre. Lá moram, além do casal, os filhos Éder e Edna e seus parentes Maria Zélia de Assis e o Juquita. Sou bem recebido. Apenas o Juquita não vai com minha cara. Simples assim.




Juquita nasceu em 16 de janeiro de 1944. Se alguém perguntar se fui ao cartório, ou liguei para alguém da família para saber esse detalhe, lembre-se de que tenho uma boa memória. Apenas um dia foi falado que a sua data de aniversário era aquela  e guardei. Outra pessoa pode também perguntar: que notoriedade tem o Juquita que merece um texto, uma crônica, palavras de recordações? As respostas devem estar adiante.


Como escrevi acima, fui bem recebido na casa dos santantonienses. Com um reparo: só o Juquita não era simpático a mim. Ódio à primeira vista.  Algum motivo deve ter existido, talvez lhe tenha, por exemplo, tomado o quarto de dormir. Não sei onde ele dormia antes da minha chegada. Os meus aposentos ficavam ao lado da sala de visitas, onde também estava o rádio do dono da casa, cujo aparelho, só tocava sanfona. Muito bem: o rapaz, que nasceu em Santo Antônio do Rio Abaixo, filho de Seu Altas e Dona Maria, não agradou de mim. Dito e repetido.


Na sua primeira noite depois de me conhecer certamente teve um pré-sonho, depois um sonho comigo, ou melhor, um pesadelo. Deve ter-me visto transvestido de lobo mau, aquele que comeu o bolo que Lalau e Lili levavam para a vovozinha. Assim coube a explicação em minha cabeça infantil. Ele procurava um jeito de ver mais defeitos em mim, além dos que eu tinha e tenho. No segundo dia de convivência, ele já começava a pensar de como pegar no meu pé. Meu apelido, desde o primeiro dia de morador da cidade, era Cheiroso. Ele não gostou e deve ter pensado assim: “Isso é um fedorento e nada de cheiroso!”.


Minha mãe, sempre quando tinha um portador, me enviava guloseimas. Era raríssimo isso ocorrer porque Guanhães ficava numa contramão bem acentuada de minha terra, São Sebastião do Rio Preto. Mas alguma coisa saborosa chegava, pelo menos uma vez por semestre. Lembro-me de quando desembarcou uma caixa de doces de leite, cortados em pedaços, e fartos.  Recebi não sei de quem, e poderia ter sido gentil, acho que não fui, ou seja, não ofereci pedaços ao pessoal da casa. Provavelmente, muito egoísta, coloquei-os num saco e pendurei atrás da porta do quarto. Os doces desapareceram, o saco ficou. Reclamei com a dona da casa. Só podia ter um autor, o Juquita, e dois responsáveis: o mesmo Juquita e sua pupila Zélia. Zezé, muito rigorosa, exigiu que os surrupiadores de doces  de leite desenvolvessem outra receita tal como existiam os doces antes. Foi feito. Estava vingado. Pendurei-os novamente atrás da porta do aposento. Ficaram intocáveis.


Tomar um lanche nas tardes entre longas horas de estudos era um prazer para todos. Mas para mim, um tormento. Religiosamente, todos éramos  chamados às 15 horas na cozinha para bebericar um café, ou café com leite, e algum comestível (pão, biscoito, bolo). Meu tormento ocorria porque exatamente no horário passava lá em baixo e parava em seguida, na avenida, bem em frente à praça de esportes, a jardineira da Vila de Coluna. A tal jardineira era o retrato do chamado “cata-jecas” de São Sebastião, que tinha o porta-malas no teto e entre os objetos sobressaía o infalível balaio de galinhas. Juquita apenas cutucava com vara curta e Zélia se desmanchava de rir: “Olha, a jardineira de São Sebastião chegou!” Bastava isso para que eu rangesse os dentes e ficasse entalado com uma resposta silenciosa. Quem me salvou um dia foi o Silvestre que, me perguntou na presença dele: “Por que você  não pergunta a ele se Santo Antônio tem jardineira?”


Vivia pensando comigo: puxa vida! Por que será que o esse moço me odeia tanto? Não encontrava explicações. Se tenho tantos amigos, por que Juquita não gosta de mim? Certa vez lhe perguntei isto: “Juquita, por que você não me larga o pé?” E pensei em chamar-lhe para uma briga corporal. Mas como? Eu era franzino, fraquinho demais, um tampinha, ele um espicho de gente, apenas um ano mais velho que eu, mas de corpo bem esticado, como todos os filhos do muito alto Seu  Altas. Eu queria brigar também com Maria Zélia, mas ela nada dizia, apenas cochichava com o seu primo e era a plateia infalível dele, deleitava com as chacotas do impertinente.


Um dia chegou um moço que trabalhava com um irmão mais velho do Juquita, o Altamirano. Acho que o nome dele era Geraldo. Ele ficou uns dias na casa do Silvestre e Zezé para  fazer uma cirurgia das amígdalas. Ele me prometeu: “No dia que for embora eu conto para você um caso do Juquita e você vai acabar com ele”. Acabar com ele era o que eu mais desejava.  Então, chegou o dia, Geraldo estava operado e pronto para ir embora. Antes de pegar o ônibus para o arraial de Goiabas, me chamou num canto, soprou um nome, partiu e pediu que não contasse quem foi que me passou o tal segredo. E partiu. Guardei a revelação que nem tanta graça assim tinha, mas já que ele odiava, resolvi aplicar a receita. Esperei o momento certo das gozações intensas e diárias. Que se repetiam todos os dias.


Pois, então, enchi a boca para soltar aquele palavrão detestado pelo moço que me odiava: “Juquita Brusaaaaaaaa!” Brusa assim grafado com “r” e não “l”, bem ao estilo dos apelidos vindos da roça. Esse veio das grotas do Inhô das Pintas. E Juquita apenas rangeu os dentes e continuou me chateando.


No ano seguinte, mudei de pensão. Mas juro que não foi por causa do Juquita. Consegui me acostumar com ele até que, depois de muito tempo, tudo mudou. Somos amigos e fim de papo, graças a Deus. Na vida tudo passa. E olhem: Juquita virou um adulto, de tão bom que é tem cara de sono.


José Sana
Em 22/11/2019


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