Dedico estas
linhas ao meu amigo José Morais de Assis, nome de cartório e pia batismal. De
guerra, simplesmente Juquita. O tempo passou e deixo, desde já, a
advertência: não tenho raiva dele, pelo
contrário, guardei estima e a tenho. As lembranças se tornam divertidas apenas. Éramos crianças, pré-adolescentes quando os fatos aqui narrados ocorreram. Os anos revelaram apenas que ele me foi útil.
Eu não podia, àquela altura da década de 1950, viver sem freio. Eu era
um menino quase totalmente livre desde
quando, aos 12 anos, passei a viver em Guanhães. Os bullyings do Juquita me
salvaram.
Vamos ao
passado. Estamos em 6 de fevereiro de 1957. Chego à Rua Santa Efigênia, não sei
o número, em Guanhães, casa de Zezé e Silvestre. Lá moram, além do casal, os
filhos Éder e Edna e seus parentes Maria Zélia de Assis e o Juquita. Sou bem
recebido. Apenas o Juquita não vai com minha cara. Simples assim.
Juquita nasceu
em 16 de janeiro de 1944. Se alguém perguntar se fui ao cartório, ou liguei
para alguém da família para saber esse detalhe, lembre-se de que tenho uma boa
memória. Apenas um dia foi falado que a sua data de aniversário era aquela e guardei. Outra pessoa pode também perguntar:
que notoriedade tem o Juquita que merece um texto, uma crônica, palavras de
recordações? As respostas devem estar adiante.
Como escrevi
acima, fui bem recebido na casa dos santantonienses. Com um reparo: só o
Juquita não era simpático a mim. Ódio à primeira vista. Algum motivo deve ter existido, talvez lhe
tenha, por exemplo, tomado o quarto de dormir. Não sei onde ele dormia antes da
minha chegada. Os meus aposentos ficavam ao lado da sala de visitas, onde
também estava o rádio do dono da casa, cujo aparelho, só tocava sanfona. Muito
bem: o rapaz, que nasceu em Santo Antônio do Rio Abaixo, filho de Seu Altas e
Dona Maria, não agradou de mim. Dito e repetido.
Na sua primeira
noite depois de me conhecer certamente teve um pré-sonho, depois um sonho
comigo, ou melhor, um pesadelo. Deve ter-me visto transvestido de lobo mau,
aquele que comeu o bolo que Lalau e Lili levavam para a vovozinha. Assim coube
a explicação em minha cabeça infantil. Ele procurava um jeito de ver mais
defeitos em mim, além dos que eu tinha e tenho. No segundo dia de convivência,
ele já começava a pensar de como pegar no meu pé. Meu apelido, desde o primeiro
dia de morador da cidade, era Cheiroso. Ele não gostou e deve ter pensado
assim: “Isso é um fedorento e nada de cheiroso!”.
Minha mãe,
sempre quando tinha um portador, me enviava guloseimas. Era raríssimo isso
ocorrer porque Guanhães ficava numa contramão bem acentuada de minha terra, São
Sebastião do Rio Preto. Mas alguma coisa saborosa chegava, pelo menos uma vez
por semestre. Lembro-me de quando desembarcou uma caixa de doces de leite,
cortados em pedaços, e fartos. Recebi
não sei de quem, e poderia ter sido gentil, acho que não fui, ou seja, não
ofereci pedaços ao pessoal da casa. Provavelmente, muito egoísta, coloquei-os
num saco e pendurei atrás da porta do quarto. Os doces desapareceram, o saco
ficou. Reclamei com a dona da casa. Só podia ter um autor, o Juquita, e dois
responsáveis: o mesmo Juquita e sua pupila Zélia. Zezé, muito rigorosa, exigiu
que os surrupiadores de doces de leite desenvolvessem
outra receita tal como existiam os doces antes. Foi feito. Estava vingado.
Pendurei-os novamente atrás da porta do aposento. Ficaram intocáveis.
Tomar um lanche
nas tardes entre longas horas de estudos era um prazer para todos. Mas para
mim, um tormento. Religiosamente, todos éramos
chamados às 15 horas na cozinha para bebericar um café, ou café com
leite, e algum comestível (pão, biscoito, bolo). Meu tormento ocorria porque
exatamente no horário passava lá em baixo e parava em seguida, na avenida, bem
em frente à praça de esportes, a jardineira da Vila de Coluna. A tal jardineira
era o retrato do chamado “cata-jecas” de São Sebastião, que tinha o porta-malas
no teto e entre os objetos sobressaía o infalível balaio de galinhas. Juquita
apenas cutucava com vara curta e Zélia se desmanchava de rir: “Olha, a
jardineira de São Sebastião chegou!” Bastava isso para que eu rangesse os
dentes e ficasse entalado com uma resposta silenciosa. Quem me salvou um dia
foi o Silvestre que, me perguntou na presença dele: “Por que você não pergunta a ele se Santo Antônio tem
jardineira?”
Vivia pensando
comigo: puxa vida! Por que será que o esse moço me odeia tanto? Não encontrava
explicações. Se tenho tantos amigos, por que Juquita não gosta de mim? Certa
vez lhe perguntei isto: “Juquita, por que você não me larga o pé?” E pensei em
chamar-lhe para uma briga corporal. Mas como? Eu era franzino, fraquinho
demais, um tampinha, ele um espicho de gente, apenas um ano mais velho que eu,
mas de corpo bem esticado, como todos os filhos do muito alto Seu Altas. Eu queria brigar também com Maria
Zélia, mas ela nada dizia, apenas cochichava com o seu primo e era a plateia
infalível dele, deleitava com as chacotas do impertinente.
Um dia chegou um
moço que trabalhava com um irmão mais velho do Juquita, o Altamirano. Acho que
o nome dele era Geraldo. Ele ficou uns dias na casa do Silvestre e Zezé
para fazer uma cirurgia das amígdalas.
Ele me prometeu: “No dia que for embora eu conto para você um caso do Juquita e
você vai acabar com ele”. Acabar com ele era o que eu mais desejava. Então, chegou o dia, Geraldo estava operado e
pronto para ir embora. Antes de pegar o ônibus para o arraial de Goiabas, me
chamou num canto, soprou um nome, partiu e pediu que não contasse quem foi que
me passou o tal segredo. E partiu. Guardei a revelação que nem tanta graça
assim tinha, mas já que ele odiava, resolvi aplicar a receita. Esperei o
momento certo das gozações intensas e diárias. Que se repetiam todos os dias.
Pois, então, enchi
a boca para soltar aquele palavrão detestado pelo moço que me odiava: “Juquita Brusaaaaaaaa!” Brusa assim grafado com “r” e não “l”, bem ao estilo dos
apelidos vindos da roça. Esse veio das grotas do Inhô das Pintas. E Juquita
apenas rangeu os dentes e continuou me chateando.
No ano seguinte,
mudei de pensão. Mas juro que não foi por causa do Juquita. Consegui me
acostumar com ele até que, depois de muito tempo, tudo mudou. Somos amigos e fim
de papo, graças a Deus. Na vida tudo passa. E olhem: Juquita virou um adulto, de tão bom que é tem cara de sono.
José Sana
Em 22/11/2019
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