Guanhães parecia
ser a metade ou 1/3 do que é neste 2019. Mas causava orgulho, principalmente naqueles
que nela chegaram para viver e prosperar. Lembro-me do Senhor Urbano Moura
acendendo um cigarro de palha e perguntando às pessoas, principalmente a mim:
“Você está observando o crescimento de nossa cidade? Loteamentos para todo
lado, construções, ruas largas surgindo? Em pouco tempo alcançaremos Itabira!”
Naquele
crescimento, ele incluía a Avenida Domingos Buzatti, que era uma espécie de “via
do contorno guanhanense”. Ele e o irmão, Senhor João, moravam nessa autoestrada
que, não fiquei sabendo o porquê, um dia seu nome foi mudado para Milton
Campos. Apesar de admirador do político que foi governador de Minas, não apreciei
a mudança. Nem Urbano, nem João, nem o fabricante do Guaraná Moura, Senhor
Raimundo, que morava mais distante, aprovariam.
A avenida começa
no Bairro Vermelho e segue até as imediações da Itambé, saídas para São João
Evangelista, Sabinópolis e Virginópolis. Toda plana, com umas pequenas recaídas
e ondulações. Uma dessas inclinações situava-se exatamente na curva que começa
com duas entradas — uma para a Cônego Davino,
que segue até a Igreja Matriz, e outra para a lendária Rua do Paquetá que,
também os incautos mudaram o nome. A onda na época, ano de 1958, era andar de
bicicleta. Os meninos da cidade, aqueles de pais mais afortunados, ganhavam
suas maquininhas. Em pouco tempo, alguns chamavam a atenção, fazendo acrobacias
pelas vias públicas.
Nas proximidades
da casa onde morávamos, uma graciosa menina chamada Norma ganhou a sua, própria
para meninas, com o quadro inclinado. Mas servia para meninos também, é claro.
Numa tarde ensolarada, depois de forte chuva, as moradoras da casa do Senhor
João Moura, incluindo Marlete, que já dava as suas pedaladas, Glória, Luzia e
Tia Mercês, todas vão para a avenida andar na kalanga da Norminha. Eu estou lá,
todo “arrasta papo”, como dizem. Sou tido como um moleirão, embora não seja.
Vejam só que injustiça me fazem!
Então, estamos
todos, os personagens acima citados, dividindo uma voltinha na admirada bike, a
partir da curva com inclinação. Acrescentem-se às características da via
pública de grande fluxo de veículos que, embora com largura acentuada, seu
espaço para rodagem sem buracos ou
trepidações, liso, há somente um, “escolhido” aleatoriamente pelos motoristas.
E o chão era todo de terra, poeira ou barro. Então, embora larga, era uma via
estreita. Aí chega a minha vez de dar
uma voltinha na magrela. Sou severamente advertido, principalmente pela Tia
Mercês, minha eterna protetora, tipo anjo da guarda. Na verdade, nunca tinha
sequer pegado numa magrelinha de duas rodas. Luzia, minha chegada amiga, é mais
audaciosa e desafia: “Aposto 10 mil réis que você não sai do lugar”. Topo a
aposta.
E saio, mesmo
desembestado como diziam dos doidos, montado na bicicleta da Norminha, avenida
abaixo. Sem pedalar, porque desço na tal recaída, sinto-me um verdadeiro
piloto. Penso comigo mesmo: é fácil demais! Imagino-me com a mão na grana e a
moral toda elevada. Sou “bicicleteiro de mão cheia”, estufo o peito
imaginariamente para mim mesmo. Até que
depois da curva aponta na minha frente um ônibus, tipo busão, da Viação Teresa
Cristina, com o nome de onde vinha, PEÇANHA, isto mesmo, em letras garrafais.
Tremo em cima da magrelinha. Estou totalmente
do lado direito e não dá para tombar para o esquerdo. Não sei frear e meu
coração dispara.
Só tenho uma saída: voar, deixando a bicicleta para trás, e saltar uma cerca de arame, caindo exatamente num lamaçal. Levanto-me devagar, coberto de barro e meio torpedeado. Fico perdido. Olho em volta, estou sem testemunhas. Que bom! — me alivio. (Só para orientar os que hoje conhecem Guanhães, o local do acidente é exatamente onde foi construída e está situada a Estação Rodoviária).
Só tenho uma saída: voar, deixando a bicicleta para trás, e saltar uma cerca de arame, caindo exatamente num lamaçal. Levanto-me devagar, coberto de barro e meio torpedeado. Fico perdido. Olho em volta, estou sem testemunhas. Que bom! — me alivio. (Só para orientar os que hoje conhecem Guanhães, o local do acidente é exatamente onde foi construída e está situada a Estação Rodoviária).
A aventura
continua. Volto, pego a bicicleta e a levo para o outro lado da avenida,
exatamente onde mora Norminha. Estaciono-a no alpendre de sua casa, onde fica
exposta, totalmente limpa e sem avarias, pois ela não acompanhou o superman ao
saltar a cerca de arame e bumbar no brejo. De volta ao lugar em que caí, logo
acima há um campinho de futebol, onde já estava acostumado a participar das
peladas. A turma conhecida joga lá neste
exato instante, viva a sorte!. Vou pra lá. Recebendo-me bem, indicam-me a minha
posição fatal, o gol, invariavelmente. Sou considerado, modéstia às favas, o
melhor goleiro da faixa etária 12-13 anos.
Na meta faço
grandes peripécias, como a meninada sabia. Só que nesse dia me apresento mais
corajoso e disposto ainda. Acabava de ganhar a vida, ou não morri por milagre.
O campo está inundado de barro como o brejo em que me precipitei. A turma vê
logo e nem repara que já cheguei meio rasgado e um pouco arranhado, mas
ninguém percebe. Jogamos até a noite e vencemos de 10 a 2.
Em seguida ao
“ranca”, subo o morro e vou para a casa
do Senhor João Moura. Chego ainda sujo e sou logo, logo, logo, questionado:
“Onde estava? Cadê a bicicleta? Você levou um tombo? Não machucou? Conte bem-contada
essa estória...” — as perguntas choveram sobre
mim. Nada respondo. Está comigo um colega de pelada, como testemunha, para
explicar que viemos do futebol. Ele ainda acrescentou: “O Cheiroso (meu doce
apelido) pegou pra valer hoje, puxa vida!. É o melhor goleiro do nosso time!”
(Quatro anos depois acabei sendo goleiro titular de muitos times em nossa
região e fiz mais de 50 partidas para o São Sebastião Futebol Clube).
A partir daquele
dia, março de 1958, desculpem não saber precisar o dia, tornei-me um exímio
andador de bicicleta, corria nos domingos inteiros numa grandona, só para
homens, do porteiro do cinema. Mas aí é outra história. Quanto à Tia Mercês, viu que seu sobrinho já
estava se descolando de sua proteção. Sobre a amiga Luzia, devo informar a todos os
que se interessam pelo caso, que ela ainda
não me pagou a aposta. Já faz 61 anos que o fato ocorreu. Ela talvez queira
fazer um depósito de dez mil reais na minha conta no Banco do Brasil. Vou passar o número para ela.
José Sana
Em 21/11/2019
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