sábado, 25 de janeiro de 2014

O Sapo da Minha Terra Natal



Vou contar a história como se fosse um conto infantil, daqueles que nos faziam dormir quando criança ou mais precisamente, às vezes, nos tiravam o sono quando continham uma dose de terror. Era uma vez um sapo. Ah, não, a história começa assim: era uma vez um arraial do interior. Nada tinha de novidade senão a sua vida pacata com alguns empinados de burros depois da algazarra, ou mais precisamente, entro numa contradição incrível, pois, verdadeiramente, todos viviam uma vida feliz. Se havia algo que poderia ser preocupante era a poluição daquele córrego, o quase Rio das Posses, que atravessa o povoado. Mas havia tanta água descendo que, hoje concluo, o regato não passava de um inofensivo quadro de ameaça à saúde. Havia no lugarzinho - vou revelar logo o seu nome - antes de tudo havia a chamada verminose como única doença pública, uma ameba,  esquistosomose e outras ameaças de vermes ou bactérias menos votadas. O arraial, ou vila, ou povoado, ou cidade agora, se chama São Sebastião do Rio Preto.

Como eu ia dizendo, havia um sapo. E o sapo morava na vila. Daqui para a frente chamo esse  cururu apenas  de Sapo da Minha Terra Natal, com iniciais maiúsculas. Para mim era o único e deslumrante, aquele que ao anoitecer começava a deixar escapar o som de suas entranhas, “roncando” mansamente em nossos ouvidos. Imaginava aquele bichinho, solitário, debaixo da ponte de madeira e terra, em frente ao sobrado em que morava e perto de dezenas de outras construções antigas, coloniais ou semi-coloniais. Chegava as 18 horas,  o sino da Igreja Matriz batia solenemente a Hora do Angelus, todos se levantavam de onde estivessem: se arreando um animal, paravam e rezavam;  se assentado, levantavam-se; se tinham um chapéu na cabeça, tiravam-no com orgulho;  enfim, cada um alterava o seu jeito de ser  naquele momento enfático da vida do arraial. Enquanto o sino batia, o sapo também batia a sua lata, imaginava  na minha ignorância infantil. Depois a minha tia Ninita, a professora do lugar, que era o nosso dicionário, a nossa gramática, a nossa ortografia e a nossa enciclopédia, nos explicava que o sapo coaxava, assim como coaxavam a rã e uma tal perereca, todos da mesma família dos anfíbios mais comuns que existem na fauna brasileira. 

A rotina se repetia tanto que parecíamos todos profetas, sabíamos a hora de tudo, o momento das reverências a Deus. Uma hora depois começaria a “reza do terço”, se não com o padre presente, uma catequista para puxar as ave-marias e os pai-nossos, seja quem fosse, ou Dona Lucinha, Dona Conceição Maia, Zica, Maria Tereza e outras. Foi assim durante anos e anos, quebrando-se os costumes aos domingos, com as missas e o povo da roça chegando. E nas festas, que tinham a Banda de Música do Godó animando, sem contar as marujadas do Cauís, Banqueta e Engenho, ah, na frente desta o quase legendário Raimundo Garangui, nome tradicional que lembrava muito seus ancestrais africanos e as comunidades quilombolas que sobraram e hoje estão espalhadas em General Carneiro, distrito de Sabará e Belo Horizonte.

O tempo passou. Eu indo e vindo. Indo para Guanhães ou Conceição do Mato Dentro ou Belo Horizonte para estudar, sempre presente nas férias e me identificando plenamente, a cada permanência na pequena vila, com o coaxar do Sapo. Imaginava esse bichinho sempre  o mesmo, que parecia bater sem parar, todo dia, sua lata particular, ao anoitecer, ou nos tirava o sono, ou  ninava-nos, crianças inocentes. Junto do sapo, fui virando adulto, depois comecei o meu período de entender  plenamente as ordens de Deus, ou da Natureza, e formar a minha família também. Nessas mudanças, afastado da vila, que virou cidade, livrando-se do jugo não tanto lucrativo dos mandos vindos da “metrópole”, Conceição. Sim, éramos colônia do reinado, nada recebíamos de melhoramentos, tudo tinha a nossa nota fiscal de aquisição, luz, água, banda de música, coral da igreja, marujos e até caboclos, escolas em que as professoras recebiam pagamentos semestrais como se ninguém comesse, vestisse e fizesse festas.
                                                
Até que um dia, sem querer, eu já havia perdido o contato auditivo com o invisível Sapo, batedor de latas. Como se fosse um desencanto sintomático, fui percebendo que aqueles intermitentes coaxares não existiam mais, ou se existiam estavam escondidos, completamente imperceptíveis, sons sem destaque, tapados por barulhos ensurdecedores de intrusos que chegaram ao lugar praticamente sem pedir licença e pensando que estivessem agradando.  
                            
O asfalto tinha se aportado no lugar como um milagre, com muita luta, mas, chegara, sim. Arrancando muita  vibração e, ao mesmo tempo, esperanças e, principalmente, durante sete longos  anos, o quase único lazer da criançada, da garotada e até dos adultos praticantes, o campo de futebol. Tirara também a tranquilidade dos lares, crianças não podem mais brincar nas ruas e nem têm onde brincar, se as quadras que construíram para o esporte em pouco tempo viraram garagens de equipamentos de guerra?  E o conhecido Estádio Dr. João Rodrigues de Moura tinha se transformado num pasto para burros, bestas, mulas, cavalos éguas, vacas, bois, bezerros e, sempre que chovia, num pantanal por onde deveriam estar também os sapos, as pererecas, as rãs. Contudo, o Sapo da Minha Terra Natal deveria continuar lá debaixo da ponte, agora de cimento armado, em frente aos inexistentes sobrados, exceto um ou outro, especialmente o da Família de meus primos, do Marcos à Maria Antônia, passando pela afilhada Marinês e pela Afra, sem esquecer o saudoso Jairo.

O que era mais desagradável ainda não mencionei.  É aquele momento que fez não somente o coaxar do Sapo da Minha Terra Natal ficar ofuscado no meio de sons estridentes. Não, caminhões de não sei quantas toneladas,  sempre carregados e sempre transgredindo as normas do peso, vigiados, acreditem, por um fiscal da própria multinacional, apelidado a estas alturas de “Raposa que toma conta do Galinheiro”. Eles chegam, às vezes perfilados um atrás do outro, roncando como equipamentos de guerra, balançando as casas como num miniterremoto, tremulando a até agora resistente Igreja Matriz de São Sebastião. Com isso, fazem com que homens e mulheres de olhos esbugalhados compareçam a reuniões da mineradora. Aí, ocorrem os momentos de  consolo, quando falam quase sempre e somente os técnicos treinados, que parecem subir de entusiasmo nas paredes como lagartixas profissionais, com as suas palavras praticamente decoradas, que enchem de esperança aquela “gente piedosa numa oração ardorosa” bem definida no hino, ou na valsa de José Afonso de Vasconcelos, letra de Mozart Bicalho. 

Mas que oração é essa? Para que as casas, construídas sem o menor  zelo, de estrutura do tempo em que os cavaleiros  vinham das roças para as festividades, as missas das 11 horas, e nem havia  calçamentos para tilintar, agora as casas trincas irreparáveis? Ah, os trustes treinados dizem: “Estamos aí para reparar todo e qualquer estrago”. E é verdade isso? Parece que sim, dizem os moradores , coitados, porque “arrumaram a casa de uma mulher humilde depois que uma carreta-monstro destruiu quase toda a sua fachada, entrando pelos quartos, sala e cozinha”. Mas ainda nem sequer, complementa a informação, quiseram  ver  a casa do Zé Buty, aquele que vai virar uma lenda na cidade por seus feitos engraçadíssimos. “A casa dele desce morro abaixo toda vez que passam aqueles brutais roncadores e a qualquer hora chega lá embaixo, no Córrego do Alexandre”.

Não há mais o que dizer. Só preciso me recorrer ao Sapo da Minha Terra Natal que, quem sabe,  estaria ainda coaxando debaixo da ponte, cujo coaxar não é mais ouvido por ninguém graças aos sons  inescrupulosos, estridentes  e penetras das carretas monstruosas que arrasam uma cidade ex-pacata, outrora de paz.  E fui lá debaixo da ponte ao entardecer e aguardar o “roncado do sapo” como dizem na terrinha, e esperei. Veio a noite incontida, veio a friagem da relva molhada, ouvia os canhões da Anglo American e de suas empreiteiras afundarem a tranquilidade no horrendo desfile pelas ruas tortuosas. Mas o Sapo nada, não estava ali, era uma abominável ausência.

E me perdoe, meu povo conterrâneo e amigo e piedoso da valsa do Zé Afonso, o Sapo humilde, percebendo que não havia mais espaço para viver e nem dispondo de algum instrumento para protestar, xingar, gritar, fechar as vias, tomou vergonha na cara e saiu para procurar outra ponte, outro córrego, outro regato para fazer nele o seu inofensivo coaxar, sinônimo de sua vida. 

E com pena de todos os que nem conheceram a vida pacata perdida por pura omissão, mesmo assim, nesse cenário tristonho,  que “o Padroeiro abençoe esse mimoso rincão”, segundo o otimismo incorrigível de Mozart Bicalho.

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