Um mero toca-disco, um pouco mais à frente que a vitrola do
Paulino, grande entusiasta da música em tempos longínquos, está escalado para
dar o toque do Hino Nacional Brasileiro. Dona Ilsa Caldeira Duarte, diretora da
Escola Estadual Dr. Odilon Behrens, chega para desfraldar a Bandeira do Brasil;
a de Minas Gerais fica por conta de José Teixeira Soares, o Zé Buty,
funcionário do setor estadual do MEC em BH; Seraphim Sanna Filho será o
responsável por abrir as abas da bandeira do município.
Quase tudo pronto. Logo ali
mesmo, na janela de sua casa, a 50 metros, está debruçada uma figura sempre
tranquila, quase intocável, alheia aparentemente a tudo. Deus sabe que não. O
nome dele é José Cândido Duarte, meu primo Dezinho, de memoráveis bagunças por
aí, de tropeços no futebol e até dos dias em que ele e Zé Pirulito me ensinaram
a ordenhar vacas. Dezinho é filho de José Cândido Ferreira de Almeida e de Dona
Semírames Duarte, a eterna Dona Ninita.
Começa o ato, ou não começa. Falta alguma coisa para ocorrer o
solene momento. Dezinho não está mais na janela de sua casa. Ele desce uma escada
íngreme, vai ao pomar, passa por rosas lindas que ele cultiva, chega ao bambuzal,
mete um facão numa peça, retira-a com carinho e sai pontilhando-a, andando,
construindo algo que ninguém sabe o quê. Ele retorna à janela, observa e constata
que a solenidade comemorativa da Independência do Brasil está ainda empacada.
Aproveita o intervalo e arruma a sua vara de bambu, experimenta com uns sopros,
esconde seu mistério sem medir o tempo. O atraso do momento cívico parecia ser
de autoria dele, de compactuar com ele, o meu primo José, que nasceu em 31 de
janeiro de 1944.
De repente o moço do toca-disco dá sinal ao prefeito que o disco
está arranhado, não pode usá-lo e seria preciso buscar outro, que ninguém sabe
onde. A restrição de uma época pré-digital não revela que não há saída para o
problema. Lilito não disse nada, mas ele está literalmente no mato sem
cachorro. Só que, imprevisivelmente, existe aí, recolhido humildemente à sua
casa, escondendo as suas virtudes, aquele que descende de Godofredo Cândido de
Almeida, cuja família se expandiu musicalmente por todos os lados, até para gerações que durarão infinitas.
Dezinho, flagrado por mim, cuidando de rosas no seu quintal |
Ninguém chama o Dezinho para socorrer aquela espécie de drama cívico. As autoridades estão de ar preso em seus correspondentes estômagos. Mas ele vai. Atravessa a rua com passadas curtas, sobe num pequeno barranco e se posiciona. Das saídas de som da peça tirada no bambuzal ressoa na Praça o melodioso Hino Nacional Brasileiro. Todos em posição de “sentido”. Dezinho não esconde agora a sua timidez. Rasga as notas musicais como se seu nome fosse Francisco Manuel da Silva. A plateia não se contém, faz o seu papel e o acompanha cantando a autoria de Joaquim Osório Duque-Estrada: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...” Houve testemunhas que choraram de emoção. Uma dessas presenciais era o inesquecível José Lucas Ferreira, mais precisamente o Zezé de Dona Maricas do Sótão do Padre, como ele próprio gostava de se autodenominar.
Foi dominado por emoções, todo arrepiado, que Zezé da Maricas me contou
detalhe por detalhe da ocorrência. Chegara eu um pouco atrasado ao fato, perdi o
maior instante patriótico já ocorrido na minha terra natal. Mas a narrativa de
Zezé serviu para me tirar do sério e me elevar ao sublime, ao mais nobre
sentimento de alegria que pode até parar um coração.
Bem. Adiante o calendário. Estamos em 14 de março de 2020. A
cidade não é mais São Sebastião do Rio Preto, mas Itambacuri, quase Bahia, no
Vale do Mucuri. É o dia dela, de minha Tia Irmã Míriam de Almeida, que completa
setenta anos de vida dedicada quase cem por cento à Congregação das Irmãs
Clarissas Franciscanas. Digo quase por que este aproximado tempo ela sorri para
seus queridos chegados que a reconhecem como uma doce criatura.
O futuro nunca acontece, ou quando se registra já é presente ou
passado. Mas, nesta antevéspera de homenagens à querida Tia Irmã Míriam ocorre,
inesperadamente, um sonho. Tanto que escrevi e bati palmas para meu primo
Dezinho que visualizei o seguinte no sonambulismo puro: estamos mesmo em 14 de março
de 2020. A Capela de Santa Clara está repleta de amigos, sobrinhos, irmãs
Clarissas. Num momento da missa, sai do anonimato exatamente o meu primo
Dezinho. Ele pega a sua flauta, talvez de bambu (não dá pra ver completamente)
e nos presenteia e à nossa Tia, com uma indescritível Ave-Maria. Alguém poderia
perguntar se é de Gounod ou de Schubert e eu retruco com muita segurança:
Ave-Maria do Dezinho.
E ponto final. Quero o meu sonho
realizado. E viva minha Tia Ir. Míriam de Almeida!
José Sana
Em 23/02/2020
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