domingo, 23 de fevereiro de 2020

VAMOS OUVIR UMA CANÇÃO INÉDITA: AVE-MARIA DO DEZINHO

Alô, leitor eventual ou milagrosamente perene, retorne o seu calendário a um passado não um tanto distante: estamos em 7 de setembro de 1991. O local em que ocorre o evento é São Sebastião do Rio Preto. O prefeito da cidade chama-se Seraphim Sanna Filho, meu Tio Lilito. Ele tem diante de si a tarefa de marcar a passagem de mais uma celebração da Independência do Brasil. Pega as bandeiras nacional, estadual e municipal e as coloca debaixo do braço, chama quem está por perto, inclusive o vice-prefeito Nozito, e caminha para o coreto instalado logo ali perto de sua casa, na Rua do Rosário, em frente ao João Paulo.

Um mero toca-disco, um pouco mais à frente que a vitrola do Paulino, grande entusiasta da música em tempos longínquos, está escalado para dar o toque do Hino Nacional Brasileiro. Dona Ilsa Caldeira Duarte, diretora da Escola Estadual Dr. Odilon Behrens, chega para desfraldar a Bandeira do Brasil; a de Minas Gerais fica por conta de José Teixeira Soares, o Zé Buty, funcionário do setor estadual do MEC em BH; Seraphim Sanna Filho será o responsável por abrir as abas da bandeira do município.

Quase tudo pronto.  Logo ali mesmo, na janela de sua casa, a 50 metros, está debruçada uma figura sempre tranquila, quase intocável, alheia aparentemente a tudo. Deus sabe que não. O nome dele é José Cândido Duarte, meu primo Dezinho, de memoráveis bagunças por aí, de tropeços no futebol e até dos dias em que ele e Zé Pirulito me ensinaram a ordenhar vacas. Dezinho é filho de José Cândido Ferreira de Almeida e de Dona Semírames Duarte, a eterna Dona Ninita.

Começa o ato, ou não começa. Falta alguma coisa para ocorrer o solene momento. Dezinho não está mais na janela de sua casa. Ele desce uma escada íngreme, vai ao pomar, passa por rosas lindas que ele cultiva, chega ao bambuzal, mete um facão numa peça, retira-a com carinho e sai pontilhando-a, andando, construindo algo que ninguém sabe o quê. Ele retorna à janela, observa e constata que a solenidade comemorativa da Independência do Brasil está ainda empacada. Aproveita o intervalo e arruma a sua vara de bambu, experimenta com uns sopros, esconde seu mistério sem medir o tempo. O atraso do momento cívico parecia ser de autoria dele, de compactuar com ele, o meu primo José, que nasceu em 31 de janeiro de 1944.

De repente o moço do toca-disco dá sinal ao prefeito que o disco está arranhado, não pode usá-lo e seria preciso buscar outro, que ninguém sabe onde. A restrição de uma época pré-digital não revela que não há saída para o problema. Lilito não disse nada, mas ele está literalmente no mato sem cachorro. Só que, imprevisivelmente, existe aí, recolhido humildemente à sua casa, escondendo as suas virtudes, aquele que descende de Godofredo Cândido de Almeida, cuja família se expandiu musicalmente por todos os lados,  até para gerações que durarão infinitas.

Dezinho, flagrado por mim, cuidando de rosas no seu quintal

Ninguém chama o Dezinho para socorrer aquela espécie de drama cívico. As autoridades estão de ar preso em seus correspondentes estômagos. Mas ele vai. Atravessa a rua com passadas curtas, sobe num pequeno barranco e se posiciona. Das saídas de som da peça tirada no bambuzal ressoa na Praça o melodioso Hino Nacional Brasileiro. Todos em posição de “sentido”. Dezinho não esconde agora a sua timidez. Rasga as notas musicais como se seu nome fosse Francisco Manuel da Silva. A plateia não se contém, faz o seu papel e o acompanha cantando a autoria de Joaquim Osório Duque-Estrada: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...” Houve testemunhas que choraram de emoção. Uma dessas presenciais era o inesquecível José Lucas Ferreira, mais precisamente o Zezé de Dona Maricas do Sótão do Padre, como ele próprio gostava de se autodenominar.

Foi dominado por emoções, todo arrepiado, que Zezé da Maricas me contou detalhe por detalhe da ocorrência. Chegara eu um pouco atrasado ao fato, perdi o maior instante patriótico já ocorrido na minha terra natal. Mas a narrativa de Zezé serviu para me tirar do sério e me elevar ao sublime, ao mais nobre sentimento de alegria que pode até parar um coração.

Bem. Adiante o calendário. Estamos em 14 de março de 2020. A cidade não é mais São Sebastião do Rio Preto, mas Itambacuri, quase Bahia, no Vale do Mucuri. É o dia dela, de minha Tia Irmã Míriam de Almeida, que completa setenta anos de vida dedicada quase cem por cento à Congregação das Irmãs Clarissas Franciscanas. Digo quase por que este aproximado tempo ela sorri para seus queridos chegados que a reconhecem como uma doce criatura.

O futuro nunca acontece, ou quando se registra já é presente ou passado. Mas, nesta antevéspera de homenagens à querida Tia Irmã Míriam ocorre, inesperadamente, um sonho. Tanto que escrevi e bati palmas para meu primo Dezinho que visualizei o seguinte no sonambulismo puro: estamos mesmo em 14 de março de 2020. A Capela de Santa Clara está repleta de amigos, sobrinhos, irmãs Clarissas. Num momento da missa, sai do anonimato exatamente o meu primo Dezinho. Ele pega a sua flauta, talvez de bambu (não dá pra ver completamente) e nos presenteia e à nossa Tia, com uma indescritível Ave-Maria. Alguém poderia perguntar se é de Gounod ou de Schubert e eu retruco com muita segurança: Ave-Maria do Dezinho.

E ponto final. Quero o meu sonho realizado. E viva minha Tia Ir. Míriam de Almeida!

José Sana

Em 23/02/2020

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