Tenho mil recordações nossas. Guardo na memória mais que isto, incontáveis instantes de vida feliz em criança, na adolescência, na juventude e para sempre.
Para o toque da solenidade só há uma velha radiola enferrujada, que arranha disco de vinil de 78 rotações. Levam-na ao alto do coreto na Rua do Rosário para “abrilhantar” a data magna, já que na cidade algo melhor não encontram naquele dia.
Fincam três bandeiras: do Brasil, de Minas Gerais e do Município para representantes do MEC, do Governo do Estado e da Prefeitura hastearem.
Apressadamente retorna, afiando as pontas da taquara, abrindo gretinhas pouco perceptíveis e soprando sons quase inaudíveis. Sente-se pronto, enfia o segredo por dentro da camisa, sobe a escadaria e espera o desenrolar dos acontecimentos.
Enquanto isso, a sessão solene comemorativa persiste naquele atraso comum, característico do jeito brasileiro, péssimo em pontualidade. Diria que Dom Pedro I estava ainda enfiando o cabresto, barbicacho, freio, baixeiro, arreio, no cavalo, e ajeitando os pés na espora para ir às margens do Ipiranga e soltar o seu grito histórico de “Independência ou Morte”.
E meu personagem continua aparentemente invisível, vence o inimigo maior, a timidez e até mesmo a humildade, como sempre de cabeça baixa. Ia ser ligada a pequena radiola, uma máquina oxidada, mas nem um mero som arranhado, sai de suas gretas.
Todos em posição de "sentido", alunos da escola idem, professoras também. Ocorreria uma decepção incorrigível, com certeza. Mas, eis que surge a salvação: nosso herói saca a flauta improvisada, como se fosse ela a espada do Imperador, sopra-a com a força da lindíssima melodia de Francisco Manuel da Silva. A pequena multidão, puxada pelas professoras, canta entusiasticamente a letra de Joaquim Osório Duque Estrada. Na Praça retumba o Hino Nacional Brasileiro, de bambu e apoteótica.
Inesquecível! Sensacional! Corações tremem de felicidade! Este momento precisaria de um registro gravado, guardado, apresentado num dia especial, numa praça de um milhão de pessoas como se fosse exibição de uma orquestra sinfônica.
Este é o meu personagem que faz aniversário neste 31 de janeiro. Para ele, que considero um primo-irmão há mais uma data inesquecível, o Dia da Independência do Brasil, quando fez uma pequena vara de bambu salvar a pátria.
José Cândido Duarte, Dezinho, é um gênio do anonimato, que domina a música com exímia capacidade, toca todos os instrumentos que conhece e os domina, tratando-os como seres de estimação. Ao Dezinho os nossos parabéns, na certeza de que Deus continuará sempre o abençoando e o seu doce sentimento humano tocado a sustenidos e bemóis.
Assino esta crônica simples como testemunha ocular desta passagem maravilhosa, quando só pude bater palmas, e arrepiar-me em posição de “sentido”. Depois não fui cumprimentá-lo porque a emoção não me permitiu: assento-me no meio fio, na porta da ex-venda do João Paulo, e seguro o choro com muita força. Hoje desabo-o com orgulho.
José Sana
31 de janeiro de 2012
PS: Voltei à casa dele para fotografá-lo tocando a flauta de bambu, mas ele preferiu apresentar-me uma outra, de louça, que era um presente guardado com carinho.
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